maio 19, 2005

Viagem de Um Urso pelo Sangue adentro Ou História de Portugal contada Aos Peixinhos

Era uma vez um urso. Grande e negro, com focinho fuso de quem cheira ar, terra e mar. De quem vê as cores todas dos sonhos, das nuvens, da chuva, do breu, da Lua, das estrelas, de quem as adivinha em sono frio, no quente da terra. E do buraco mais fundo, húmido e preto do mundo espreguiçou-se sem ninguém ver, levantou-se sem ninguém espreitar, espreitou sem olhar ninguém e surgiu com todo o seu tamanho ao mundo. Por entre os artifícios de luz dos pinhais que nasciam, dos fetos vermelhos que aos seus pés se enrolavam, procurava um fim de mundo em que se pudesse encontrar, enquanto as brisas de sul lhe abriam os olhos turvos e se escancaravam num areal branco, imenso, a perder-se num horizonte azul de mar que nunca mais chegava, de águas que rugiam tudo o que se ouve na palavra medo, recuando passos, engolindo sonhos, semeando silêncio em cânticos de marulhar. Mas de onda em onda, de trago em trago, fixa-se no olhar negro a luz dos sóis mergulhados e da espuma. Em passos hesitantes de leveza impossível, as garras apagam-se na areia mole e engulo o último ar de areia.

Meus dedos acompanharam o embalar dos calcanhares. Senti aquele chão como se ele fosse o mundo todo que me pisava. Como se de tinta, óleo, suor e carvão se fizessem, os primórdios de terra subiram por dedos, por pele, por nervos acima, cravando-se-me no pescoço. Prendendo com a força derradeira que nega a ordem das coisas anteriores, impondo aquela minha posição de rocha e estaca como se fosse a genesíaca, a primeira, a única, como se o prender fosse abraçar, como se Eu ali tivesse nascido. Decepando o que a contraria, num golpe sanguinário de capricho, numa vontade, nuns olhos que se abriam em cisão de Mim. Entre o medo e o desejo. De deixar de ser o que sei ser, de morrer em Mim o que conhecia.
E inundei. Como em acordes picados o frio da água tocou-me, na planta de pé que se unira aos restos de mortos famintos (com que se faz o chão). Em marés de alguidar o gelo atordoante ia despertando. Ia acordando para a sede que tinha de ti. Ia puxando os passos como quem puxa o amor que não nasce. Olhava o horizonte. E o mar das vontades humanas penetrou em Mim, enchendo-me de ilhas fecundas a espalhar pelo mundo, boiando onde o destino se encarregue de as levar não existindo, vagueando nas águas dissolvidas em grãos de infinitude. Desfiou-se em Mim em negação do mundo, em mergulho no escuro, em vontade de identidade, em esticar do corpo mole.
No fundo de um mar de água, os olhos se habituam à proliferação de corais de ouro, perdição, incenso, seda, canela e mirra. Se habituam e se embebedam na fascinação do mundo que se existe e que se engole para a barrigada de mundo que se vai vendo. Para a sensação ilusória de que não acaba e se fez só para nós (enquanto o tecemos entre as palavras inventadas).
E me absorvo, em cada corrente de vento comprimido, pelo que me deslumbra e que me vejo querer amar, adorar, abraçar, guardar, possuir, engolir, devorar. A paixão sobe-me no peito em graus de febre, consumindo o ar que retive. Até que a água invada e entre por olhos, nariz e garganta, até que me encha quando o ar deixar de me encher em lugar algum. E fica o sufoco, quando o bicho, não sendo da terra, não sabe respirar mar.
Águas, estradas de maus caminhos, onde se esconde o perigo, o abismo, a loucura, gotas vertiginosas do mais doce que me encerra a Alma, quebrada por fim inglório se tal viagem não fiz. Alma guiada pela morte, Morte grande, de letras colossais. Que Eu morra se chegar ao destino que me fiz, porque não há vida fora de Mim. Não há realidade fora de sonhos, só o respirar mecânico que se esgota. Que eu penetre na vida como na morte, como em Mim, como quem se abre ao céu e se ouve no silêncio dos seus gritos de euforia.
E na minha paixão de morte quebram-se as tábuas onde me fundei, iludida pela robustez dos troncos, inconscientemente acreditando que a terra era a unidade, quando o mar a tinha toda invadida, assim como prontamente espirra e escorre pelas fissuras, com a calma da eternidade. E todo o meu Eu dos outros se desvanece calcinado pelas profundezas. Resto Eu, sozinha comigo, subindo ao mastro, cobardemente, tremendo. Como as placas tectónicas que se desconjuntaram nas origens de Mim...

Afinal, é a minha primeira Morte.

E a água finge ignorar-me, como se simplesmente enchesse já pedra morta, não vendo o meu estômago que se afoga de sal, engolido às dentadas por digerir amor demais. Quando todos os feitos se finalizam, quando o intento supera o limite do humano, também o corpo se esprai e a alma ultrapassa a fronteira do universo, que separa o tudo, as forças, do nada, do vazio.
O escuro. Que antes do embalo não é feito de vazio mas sim do sufoco. De aperto. Do estrebuchar de morte aguda, sofrida e arrependida. De quem quer viver para desejar a morte eternamente. De quem não quer só liberdade, mas o poder de a querer livremente. E se esquecem as mãos de urso que seguraram as cordas, que puxaram o mar. Se apodrecem primeiro nos naufrágios por não quererem ser mãos. Mas quando tudo se resume à força das mãos que, contra o peso do corpo de fera, abrem asas que lhe esticam a pele e a erguem por abismos, ventos mergulhados, águas frias. E se puxa e enrola e se impele e se força e se conspira e se sofre e se desprende e liberta e se revolta e se marcha e se impõe e se corre e se salta e se berra e empurra e se ilimita. Enquanto o sol se revela para além de águas e se aproxima, em milhares de espelhos no céu que vejo, em sangue de cravos coagulando no mar, enquanto imirjo em êxtase absoluto à superfície. Para as minhas goelas se abrirem e devorarem ar, em sorvos de condenada à fome. Vencer a morte com a morte em si pela loucura que é, pela paixão com que transborda, pela vida que se aposta, em acto de coragem derradeira, desesperada, inevitável.
E de novo surgiu o horizonte. Fixo e imutável, inalcançável, em todas as voltas que o mundo já deu. Mas tão tentador nessa impossibilidade, nessa ânsia de encontrar, de avançar, de ver, de sonhar. Porque apesar do esquecimento da hibernação primeira, de tão distante no acumular de memórias, na sucessão de todas as águas e mergulhos, todos os goles e todos os passos, todas as dores todos os flutuos, foi tudo apenas uma gota no rolar inteiro do Mundo. Muito há para afogar até ao infinito, onde o horizonte se acaba.
E a vontade revolve-me o espírito negro, a de te sugar de um trago e engolir-te, Mar da minha lusitana terra, por todo o amor com que me apertas as vísceras.E nas águas calmas do meio-dia, nos prados a perder de vista do oceano, e na estagnação que clama por vida, e no tempo parado que anseia a derrota, e nos vapores urgentes da tempestade, Eu desejo as nuvens que se erguem no fim do mar, Eu grito pela revolução por mim adentro. Eu quero a chuva, Eu quero o escuro, Eu quero as ondas gigantes que me suicidam, Eu quero os berros, Eu quero a trovoada que me abre em dois, Eu quero afogar-me de novo, para de novo acordar e saber
que não morri.

1 silêncios:

Anonymous Anónimo fechou os olhos e disse:

Fico sem palavras perante a grandiosidade das palavras, da memória racial que nos puxa de volta ao mar, de onde viemos, para onde vamos? Questões. Meras questões. Que se afogam na vertigem das tuas palavras. Adorei ler.

21.5.05  

Enviar um comentário

<< casinha